O Estado de S. Paulo
10/11/2020
Wellington Nunes, Doutor em sociologia pela Universidade Federal do Paraná, atualmente participa de um programa de pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da mesma instituição, onde atua como professor e pesquisador. É bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutoramento (PNPD/CAPES).
José Celso Cardoso Jr., Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA. Atualmente, exerce a função de Presidente da Afipea-Sindical e nessa condição escreve esse texto.

No dia 3 de setembro de 2020, o governo federal enviou ao Congresso Nacional uma proposta de reforma administrativa (a PEC 32/2020) sob a justificativa genérica de combater os privilégios do serviço público nacional. O argumento subjacente é que o setor público, por ter supostamente crescido de maneira descontrolada nas últimas décadas e possuir remunerações que imaginam exorbitantes, quando comparadas com as do setor privado, ocuparia cada vez mais espaço no orçamento, ameaçando a solvência fiscal do Estado.

O problema é que a equipe econômica não apresentou nenhum estudo técnico que pudesse conferir alguma sustentação empírica a esse argumento. Mais especificamente, não há um diagnóstico claro de onde estariam localizados os privilégios que o governo diz ter a intenção de combater. A PEC 32, aliás, embora tenha levado quase dois anos para ficar pronta, preserva o jeitão dos programas eleitorais de governo – construídos a toque de caixa, com o objetivo de apresentar um conjunto de intenções genéricas em períodos de campanha. Esse caráter impressionista tem ficado cada vez mais claro desde que a proposta foi enviada ao Congresso e pôde ser exposta ao escrutínio público.

Dessa forma, já se sabe que a pré-noção genérica de que o serviço público brasileiro seria uma espécie de oceano de privilégios é falacioso por pelo menos quatro razões. Em primeiro lugar, o Atlas do Estado Brasileiro, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e que reúne informações detalhadas sobre o setor público nacional, mostra que a evolução do número de vínculos, no período 1986-2017, ocorreu sobretudo nas esferas estadual e municipal, acompanhando a expansão da prestação de serviços (saúde, educação, assistência social, segurança pública etc.) à população. Em segundo, o emprego privado é dominante no país e cresce de maneira muito mais intensa do que o emprego público. Em terceiro lugar, não há crescimento acelerado das despesas em função do aumento do número de servidores: considerando o período 2006-2017, houve crescimento moderado das despesas com servidores civis da ativa nos três níveis federativos, em relação à evolução da receita corrente líquida, mas estabilidade dessa despesa como proporção do PIB.

Em síntese, as informações sumarizadas até aqui corroboram conclusões da terceira edição do Panorama das Administrações Públicas: América Latina e Caribe, um projeto conjunto da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), publicada em
março de 2020. Duas contatações decorrentes das comparações internacionais são importantes: i) não há hipertrofia no setor público brasileiro, ou seja, o emprego público por aqui encontra-se em nível muito próximo à média dos países da ALC e bem abaixo da média dos países da OCDE; e ii) a taxa de crescimento do emprego
público no Brasil na última década esteve entre as mais baixas do mundo, inclusive frente à média dos países da OCDE – que, por possuírem setores públicos mais robustos do que os dos países latino-americanos e caribenhos, tendem a ter uma taxa de crescimento mais lenta nesse quesito.

Finalmente, em quarto lugar, as discrepâncias entre as remunerações dos setores público e privado são muito menores do que sugerem comparações metodologicamente questionáveis, como as que se baseiam em médias gerais para os dois universos. Utilizando-se comparações mais adequadas, constata-se que:

i) as remunerações do setor público nacional são muito heterogêneas e predominantemente baixas, ou equivalentes, quando comparadas às remunerações do setor privado;

ii) as maiores discrepâncias em relação ao setor privado se concentram apenas entre os 10% mais bem pagos e nas carreiras jurídicas, de representação externa, tribunais de contas, atividades de fiscalização e nos altos escalões da administração presentes nos três poderes e Ministério Público;

iii) se retirarmos da folha de pagamentos os profissionais da área jurídica do setor público, a diferença de rendimentos entre este e o setor privado cai de 13% para 4% apenas.

Diante disso, quem são e onde estão os privilégios de remuneração no serviço público federal? Um caminho bastante óbvio é identificar a quantidade e o impacto fiscal das remunerações que ultrapassam o teto legal para o funcionalismo público nacional – representado pelo salário-base dos ministros do Supremo Tribunal
Federal (atualmente em R$ 39.293,32). Este valor, contudo, não leva em conta auxílios, gratificações, licenças remuneradas etc. (os chamados “penduricalhos”). Para contornar isso, o critério aqui utilizado foi o seguinte: foram considerados apenas os vínculos cuja média das remunerações mensais, no ano em questão, tenha sido superior à média da remuneração que um ministro do STF recebeu naquele ano, incluindo eventuais penduricalhos.

Para esse exercício, utilizamos uma base de dados produzida pelo Atlas do Estado Brasileiro a partir da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), que contém estatísticas relativas aos vínculos de trabalho ativos e permanentes no setor público federal civil brasileiro, nos três poderes, para os anos de 2000, 2005, 2010, 2015 e 2018. Com esse critério, a quantidade de vínculos com remuneração acima do teto funcionalismo público, ao contrário do que muitas vezes se imagina, está muito longe de ser exorbitante. Ao contrário, trata-se de um grupo bastante minoritário, mas ainda assim, uma verdadeira elite em termos salariais.

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